segunda-feira, 2 de junho de 2014

O meu corpo




Há uma ruga atravessada na testa como um rio cavado, que sobressai nos momentos de maior cansaço. Nesses dias, ela torna-se um vale escarpado, que turva o meu olhar e quebra o meu sorriso.
Há a barriga grávida de vento, que só gera sons ridículos e parece quase explodir. Ela acentua a curva das costas e rouba-me o gosto de apreciar o meu corpo nu.
Há a gordura nas costas, mais incomodativa que a da barriga, porque me lembra as da minha mãe. E assim as minhas costas já não são as minhas, mas as dela. Eu deixo de ser eu e passo a ser outra mulher – aquela outra e não eu.
Vou-me escondendo progressivamente em camisolas-lençóis ou, então, apertando-me em espartilhos, que não deixam de evidenciar a minha forma quadrada e não impedem a subida da ridícula minissaia nem os círculos da silhueta. É evidente a necessidade de fazer exercício físico, agora que já me consigo mexer sem ficar aflita.
Mas isso não vai apagar a vermelhidão do rosto, efeito secundário de tanto remédio para o estômago, nem os cabelos brancos, nem o papo entre o queixo e o pescoço, nem…
Tudo se iniciou quando, há cerca de uma década, tirei aquelas fotografias, umas atrás das outras para o BI, e não me consegui reconhecer. De repente, tinha uma cara mais velha, mais inchada, marcada pelas insónias. E com estas vieram as perdas de memória, os insuportáveis esquecimentos das coisas mais simples até aos aniversários dos familiares.
Este corpo envelhecido, no entanto, encanta-se com a beleza da vida - a alegria das crianças, as artes, a capacidade de entrega, a paciência, as revoluções - e fervilha de emoção, rodopia até mais não, corre, salta e sente-se feliz por receber e dar esse amor.
Este corpo sente que Deus está presente e nos quer tanto bem.
Este corpo voa, transmuta-se com as músicas da terra, dança os cheiros da fruta e cria jardins em qualquer lugar.
Este corpo quer sentir e dar prazer, ser beijado e beijar, ser tocado e tocar intensamente até o tempo parar.
Até o tempo parar…