terça-feira, 2 de maio de 2023

Não estar carente

 

 

Quando estou carente, perco por completo a objetividade, submeto-me passivamente às migalhas, à manipulação, à falta de respeito por mim própria e aceito receber apenas de acordo com as tuas necessidades, o teu querer, a tua forma de amar. Abandono a minha vontade, por mais que tente em vão lutar por ela, pois essa minha atitude de submissão não me permite ter o amor-próprio, que me propiciaria a resiliência e o saber afirmar-me.

Como saber distinguir um estado de carência de outro, mais emocionalmente inteligente, no qual tenha consciência de quais os desejos, ideias, princípios imprescindíveis ao meu bem-estar e não os percecione como falta, mas como parte integrante, vital, imprescindível?

Quanto a mim, não há “ligação” sem a expressão livre do afeto, sem o tempo comum do verdadeiro encontro de almas. E essa conexão é tão essencial como respirar e só ela explica a enorme diferença entre fazer amor e sexo.

A não realização deste desiderato, por estares encerrado em medos e frustrações do passado, desencadearam em mim gritos mudos de dores, que não foram mais do que uma faceta da morte. Mas, graças a Deus, à biodanza, à meditação, à formação em inteligência emocional, que me abriram caminhos de paz e convicção, fazendo com que eu procure ver em cada problema um desafio e focar-me no que de mais positivo encontro, despertou em mim a alegria das crianças, a incomensurável vontade de saber, a luta pela justiça e pela bondade, a poderosa força de uma deusa, que são a minha essência e me propiciaram a condição para quebrar o padrão de te querer mudar, por não partilharmos valores e/ou afetos.

A consciência deste amor multifacetado permite-me sobrevoar a condição de carente e não enveredar mais por relações, nas quais te tento moldar ao meu jeito, mas sim aceitar-te como és. Vislumbro um percurso exigente (e nem gostaria que de outra forma fosse), pois lidar com a diferença é algo verdadeiramente difícil.

Acresce ainda a tentação de me encontrar em ti, qual Narciso, desejando que me ames tal e qual como eu o faço. Queria eu que tivesses sede diária de pele, olhares, danças de carícias, palavras loucas, profundas, inspiradoras… como eu tenho. De igual forma, te quero verdadeiro, espiritual, respeitador e responsável, fascinado pela cultura, quase como se pudesse compor-te para a minha felicidade.

Percecionar a distância da minha idealização para quem tu és faz-me sentir perdida. Por outro lado, as tuas couraças ainda aumentam mais o meu desnorte, por criares um território de reserva por não quereres voltar a dececionar-te, a sofrer. As tuas reservas, mágoas e desconfianças são lanças na minha entrega a ti, que inexplicavelmente, não se deixa desvanecer, pois eu não consigo amar aos bocadinhos, gradualmente. Quando amo, ponho-me toda em tudo o que faço. E eu faço tudo com paixão.

Só um amor sublime te permitirá ver que sou especial, única, pois sei estar presente tanto nas coisas boas como nas mais difíceis. Eu sei dar-te tempo e espaço, mas tenho limites, isto é, se estiveres cego pelos problemas que te frustraram, não te suplicarei carinhos nem atenção, nem nada, pois ou me sabes valorizar e te abres a mim ou ficarás preso na tua dor.

Só um amor sublime me permitirá dar e receber em vez da neurose de reduzir o amor à minha missão de ajuda, ou da tua transformação, porque assim estarei a amar-me, por também cuidar de mim e a respeitar-te por te aceitar. Tenho de trabalhar o desapego, no sentido de saborear este amor-próprio, para te saber amar sem te querer moldar, focando-me e agradecendo o que recebo de ti e não o que me falta, mas tendo a lucidez de saber que és para mim, não um ser perfeito, mas um ser lindo, que admiro e respeito.

Assim ampliaremos a felicidade um do outro, fascinando-nos com as mais simples coisas, não por carência, mas porque construímos em comum, ligando-nos.

 

2 comentários:

  1. Muito bom. Escreves com muito sentimento.
    Não está só bem escrito, como tem o toque da diferença, entre aquilo que está técnicamente bem, e o que tem o toque da diferença, ou como eu costumo dizer, sente-se Alma no teu texto.

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  2. Bonita reflexão e texto muito lúcido e bem escrito.

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